quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
O transporte de drogas em ônibus rodoviário
Dentre os objetos ilícitos transportados com certa frequência em ônibus rodoviário pode-se afirmar que se sobressaem as drogas, em razão do grande volume apreendido como consequência da ação policial.
Em comum, os crimes relacionados ao transporte são classificados pela doutrina penal como “permanentes”, no que se refere ao período consumativo, diferentemente do crime instantâneo que se consuma num só instante, a exemplo do homicídio, como define Paulo José da Costa Júnior: “Crime permanente é um crime único, em que a conduta e o evento se protraem no tempo. Há um período consumativo, composto de vários momentos consumativos. A lesão ao bem jurídico é contínua, não se interrompe jamais” (Curso de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. 1.v. p. 7).
E o reconhecimento do constante estado de consumação é importante, pois, na configuração do transporte ilícito, dele decorre que poderá haver prisão em flagrante delito do autor, durante todo o tempo em que durar o seu completo deslocamento até o ponto de entrega. Portanto, o órgão policial competente tem na busca em ônibus rodoviário uma oportunidade ímpar para reprimir atividades criminosas relativamente comuns, surpreendendo o infrator em flagrância delituosa, quando da localização do objeto sob sua responsabilidade, em qualquer momento do transporte.
Posto isto, convém analisar a legislação pertinente e os modos de ação criminosa comuns (“modus operandi”) relacionadas ao tráfico de drogas mediante uso de ônibus rodoviário.
A Lei Federal nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Antidrogas”, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e estabeleceu normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, definindo infrações penais correlatas.
A “substância entorpecente” referida na legislação anterior (Lei Federal 6.368/76, revogada), passou a ser identificada simplesmente como “droga”, cuja definição foi dada pelo parágrafo único do art. 1º, da Lei 11.343/06: “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.
Já o art. 2º da nova lei tratou da proibição das drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvando a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o estabelecido na Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Dessa forma, a lei apresenta normas penais em branco, eis que dependem de documentos externos para a qualificação, em primeiro momento, de quais são as substâncias reconhecidas como droga - proibida como regra - e, em segundo momento, da existência ou não de autorização legal ou regulamentação para o seu uso. O documento a que se refere o art. 1º (“listas atualizadas periodicamente”) consiste ainda na Portaria nº 344/98 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, do Ministério da Saúde, atualizada por outras sucessivas portarias do mesmo órgão.
Apesar de ser empregado na linguagem comum apenas o vocábulo “tráfico”, como sinônimo de “negócio proibido”, acertou o legislador quando tratou dos crimes relacionados ao “tráfico ilícito”, eis que “tráfico”, isoladamente, significa “comércio, negócio” (MICHAELIS, Moderno dicionário da língua portuguesa, 2008). Então, o negócio proibido, ou uma ação relacionada a esse negócio, constitui tráfico ilícito. De fato, pode existir “tráfico lícito de drogas”, a exemplo de transporte autorizado de droga de uso controlado, mediante licença prévia, pois, conforme art. 31, da lei nº 11.343/06: “É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais” (grifo nosso)
Quanto às infrações penais, nota-se que a lei estabeleceu tratamento extremamente diferenciado para o usuário dependente de droga, que não está sujeito à pena de privação de liberdade (art. 28, relacionado ao porte), em relação ao traficante (art. 33), que se tornou alvo de pesadas penalidades. A “pena” para quem porta drogas é de: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28); já a pena para o traficante é de: reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Ainda, o art. 44 coloca sérias restrições ao traficante, quando prevê que os crimes do art. 33, caput e parágrafo 1º, e 34 a 37 são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Em ambos os tipos - de ação múltipla - foram incluídas as condutas de “transportar” e de “trazer consigo”. O que distingue o porte do tráfico ilícito é a finalidade, descrita pelo respectivo elemento normativo, ou seja, se a droga é destinada para consumo próprio do agente, ou para fornecimento a outrem. Em qualquer caso, o dolo é essencial, pois não foram previstas modalidades culposas nas infrações penais estabelecidas.
De acordo com o parágrafo 1º, do art. 33, para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal: “... o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Esse texto não existia na lei anterior (6.368/76) e o legislador estabeleceu critérios subjetivos na análise da conduta do agente, para se reconhecer a destinação da droga como sendo para uso pessoal, ou para uso de terceiros.
Na situação de droga localizada em ônibus rodoviário, poderá a conduta do agente ser interpretada como “transportar” ou “trazer consigo”, para “uso próprio” (porte de usuário), ou para destinação a terceiros (tráfico ilícito), dependendo das circunstâncias do caso concreto. Quando o agente traz a droga junto ao seu corpo (por exemplo, nos bolsos), ou em bagagem de mão guardada em baixo de sua poltrona ou no porta-embrulho do ônibus, na direção do seu assento, em pequena quantidade, entendida como tal o suficiente para seu próprio uso, tem-se a convicção de que o agente “trouxe consigo” droga para consumo pessoal.
Nota-se, todavia, que a pequena quantidade de droga encontrada não é fator que impede a prisão em flagrante com base no art. 33, conforme julgado: “A pequena quantidade de droga apreendida por si só, não é suficiente para ensejar a desclassificação do delito, ainda mais quando há outros elementos aptos à configuração do crime de tráfico” (STJ: HC 44119/BA).
Quando a droga é encontrada no bagageiro (lado externo do ônibus), a conduta é, sem dúvida, a de “transportar”, faltando verificar a finalidade. No caso de localização de droga em volume além do que seria razoável para uso particular do agente, restará interpretação de que se configurou o tráfico ilícito (art. 33). Da mesma forma, aquele que transporta em uma bagagem de mão, no porta-embrulho do ônibus, ao lado ou embaixo da poltrona, volume considerável de droga pelo mesmo critério, estará incurso na conduta de tráfico ilícito.
Ainda relacionado ao transporte, o art. 34 traz o crime que trata, dentre outras situações, da desautorizada movimentação de equipamentos e materiais destinados ao preparo da droga. Quanto às substâncias eventualmente transportadas, Miguel Elias Daffara apresenta conceitos de grande valor para a ação policial e os seus decorrentes e necessários registros (Nova Lei de Drogas e Atuação do Policial Militar no Policiamento Preventivo. Revista A Força Policial, nº. 56, 2007, p. 78), conforme segue:
Matéria-prima é a substância principal da qual se extrai a droga; insumo é o elemento que, apesar de não ter a aptidão de dele se extrair a droga, é utilizado para produzi-la, ficando agregado a ela, vg: bicarbonato de sódio empregado na produção do crack, a partir da matéria prima cocaína; produto químico é a substância utilizada na produção da droga, sem agregar à matéria-prima (por exemplo, acetona no refino da cocaína). Tais substâncias, por si só, podem não ser ilícitas; por isso o policial terá que indicar provas de forma a demonstrar no caso concreto se a finalidade era a produção de drogas.
Ainda no que toca ao transporte de drogas em ônibus rodoviário, constata-se que os traficantes de maior capacidade têm contratado indivíduos que se arriscam em levar em suas bagagens quantidades de 20 a 60 Kg de drogas por viagem, em ônibus de linha regular com destino aos grandes centros consumidores como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e outros. São conhecidos como “mulas” e recebem mínimas informações a respeito da origem e do destino da droga, de modo que o risco é assumido de forma pessoal, em troca de um pagamento que gira em torno de R$ 500,00, recebidos no ato de entrega, no ponto final. Esses ônibus são provenientes de regiões onde há grande oferta de droga e, por vezes, o “traficante intermediário” - que assume o contrato de risco com passagens pagas - viaja em ônibus fora do eixo principal do itinerário para despistar a fiscalização, realizando baldeações.
A maior parte da droga apreendida em ônibus é constituída de tabletes de maconha prensada (“Cannabis Sativa”) pesando 500 g ou 1 Kg cada uma, envoltos em papel celofane transparente ou colorido, acondicionados em bolsas de viagem ou camufladas nas mais diversas formas que a criatividade humana pode idealizar. E, também, há registros de transporte expressivo de haxixe, cocaína em pasta ou refinada (em pó), crack e frascos de lança-perfume, dentre outras substâncias ou produtos qualificados como droga. “Cloreto de etila” é a substância proibida no Brasil conforme Portaria SVS/MS 344/98 e encontrada no lança-perfume, em frascos que vêm normalmente da Argentina, via Foz do Iguaçu, transportados em veículos particulares ou em ônibus de linha regular ou fretado; e, também, a Lei nº 5.062, de 04/07/66 proíbe a fabricação, comércio e uso do lança-perfume em todo o território nacional, nos seus art. 1º e 2º.
A título de ilustração dos transportes de drogas interceptados, aconteceu em 29 de janeiro de 2008 a ocorrência com apreensão de droga, publicada no site www.assisnoticia.com.br em 01/02/08, com o seguinte relato: “Um jovem de 27 anos, morador em Ibia (MG), foi preso por volta das 2h30, na Rodovia Raposo Tavares, Km 445, em frente à Base Operacional de Policiamento Rodoviário de Assis, transportando maconha em um ônibus de passageiros que seguia para São Paulo, vindo de Foz do Iguaçu. A apreensão mostrou a criatividade dos chamados “mulas” (pessoas que transportam entorpecentes): a droga estava dentro de rolos de madeira, envoltos por tecido, somando 19,5 Kg de maconha e 500g de crack. Durante a revista, os policiais militares rodoviários encontraram uma grande mala com os rolos de tecido e, suspeitando da carga, resolveram rasgar o tecido e encontraram a droga escondida (matéria publicada no site www.assisnoticia.com.br).
Em outra ocorrência, no dia 18/03/2008, policiais militares rodoviários da 4ª Cia do 2º BPRv, ao revistarem na rodovia Assis Chateaubriand (SP-425), em Penápolis, o bagageiro de um ônibus que fazia o itinerário do município gaúcho de Cruz Alta a Barreiras, na Bahia, encontraram maconha escondida dentro de 06 cestas de páscoa, cuidadosamente embrulhadas, contendo mais de 6 kg de droga em cada uma. O passageiro responsável era um morador de Brasília, de 24 anos, jardineiro, que foi preso em flagrante e disse à polícia que ganharia R$ 500,00 para buscar a droga em Foz do Iguaçu e levá-la até Brasília, onde receberia o dinheiro pelo transporte (matéria divulgada em http://noticias.uol.com.br/ultnot/agencia/2008/03/19/ult4469u21475).
Com tal estratégia de deslocamento do produto ilícito até o local de consumo, o produtor e o grande distribuidor pulverizam as ações de transporte e, assim, diminuem o risco de perdas em decorrência de eventuais apreensões, além de transferirem o risco de prisão ao intermediário contratado. Independente disso, a prisão do traficante intermediário na fase do transporte quebra o fluxo do tráfico e, portanto, representa uma intervenção policial eficiente, com resultado imediato na repressão a essa modalidade de crime.
autor: Adilson Luís Franco Nassaro
Major PM Coordenador Operacional do 32º BPM/I, Assis/SP.
(reprodução autorizada, desde que citadas a fonte e a autoria)
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