Quem passa pelo cruzamento da Rua Alfredo Maia com Rua Rodrigo de Barros, no Bairro da Luz
em São Paulo, se surpreende com a imponência de um sobrado de arquitetura
característica dos anos 1920, com bandeiras hasteadas na sua sacada principal e
um campanário em sua lateral. A obra integra o importante conjunto
arquitetônico do bairro, junto com quarteis centenários e suas histórias de
heroísmo, funcionando como sede da autarquia Caixa Beneficente da Polícia
Militar (CBPM), órgão de apoio à família dos militares do Estado de São Paulo
criado em 28 de setembro de 1905.
No ano
de 1917, sob a superintendência do Coronel Antônio Batista da Luz, a Caixa Beneficente da então Força Pública do Estado de São
Paulo (atual Polícia Militar do Estado de São Paulo) teve a oportunidade
de adquirir seu próprio espaço: um terreno sem edificações, que compreendia à
época uma área de mais de 12 mil metros quadrados.
Como marco inicial em pesquisa sobre o imóvel,
foi possível localizar o registro da matrícula do terreno (de número 5.825, do 2º Cartório de São Paulo) adquirido em 24 de janeiro
de 1917. Consistia em uma ampla área do “Recolhimento de Nossa Senhora da
Luz”, na
antiga Freguesia de Santa Efigênia, descrito
como “com frente para a Rua Rodrigo de Barros,
onde mede 52,90m, para a Rua Alfredo Maia, onde mede 230m, e para a Rua Dr. Jorge de Miranda, onde mede
53,70m; tendo uma área de 12.259m², confinando com as ruas mencionadas e com o
prédio ocupado pelo Quartel do Segundo Batalhão”. Note-se que, em 1917, já
existia o histórico quartel do atual 2º Batalhão de Polícia de Choque (2º
BPChq), que fazia limite com a ampla área adquirida naquela oportunidade. Já o
antigo proprietário do terreno, o Recolhimento Nossa Senhora da Luz, atualmente
denominado “Mosteiro da Luz”, também permanece na vizinhança há mais de cem
anos.
Em pesquisa no Museu da Polícia
Militar, de 26 Jun. 2017, foi possível localizar cópia do Boletim Geral n. 98,
de 1925, em que se publicou o registro completo da solenidade ocorrida em 03 de maio de 1925, em ata do “Assentamento
da Pedra Fundamental do prédio da Caixa Beneficente da Força Pública”. A nota foi
assinada pelo notável Comandante Geral da Força Pública, Coronel Pedro Dias de
Campos, que acumulava, por força legal, a função de Superintendente da Caixa. Constou
na nota:
Aos três dias do mês de maio do ano de
mil novecentos e vinte e cinco, nesta Capital de São Paulo, às nove horas da
manhã.... ...procedeu-se à solenidade do assentamento da pedra inaugural para
este edifício, que foi colocada no bloco de fundação de um dos pilares
principais, e dentro se encerram uma cópia da presente ata, devidamente
assinada, um exemplar da última edição de cada jornal e revista da Capital e
moedas correntes do País... realça, ao final, a alta importância econômica para
a instituição e o considerável valor de sua utilidade que representa um
atestado eloquente da prosperidade da Caixa e da Força.
Apesar de tentativas, não foram
ainda localizados os objetos e registros dessa espécie de “cápsula do tempo”
que se mantém junto à fundação de um dos pilares principais da sede histórica
da Caixa Beneficente, deste o início de suas obras. A diretoria da Caixa tentou,
em 2017, localizar - com equipamentos próprios de detecção - possíveis locais
onde ela permanece depositada, mas não obteve sucesso. Como se observa na nota
publicada, não existe indicação precisa sobre em qual dos pilares da sede ela
foi guardada.
A construção do magnifico prédio consiste em
mais uma entre as muitas obras do distinto Coronel Pedro Dias de Campos que liderou a Força Pública de 1924 a 1928, igualmente
responsável pela criação da Cruz Azul, constituída no mesmo ano de 1925. Consta
no histórico da Cruz Azul: “em 1925, a Comissão de Damas da Sociedade
Paulistana pediu apoio ao Coronel Pedro Dias de Campos, com o intuito de
amparar órfãos e viúvas dos soldados. Com esse espírito solidário, o Sr.
Sampaio Moreira doou o terreno no Cambuci em que, dez anos depois, foi
inaugurado o Hospital e Maternidade Santa Maria da Cruz Azul, vencendo
percalços de ordem financeira em prol da população” (disponível em: <http://www.cruzazulsp.com.br/institucional/historia/>;
consulta em: 22 Ago. 2017). A Cruz Azul é mantida até hoje como parceira da
Caixa Beneficente na assistência à saúde da família policial-militar, o que
demonstra a visão de futuro do então Comandante da Força Pública.
Também
os jornais da época noticiaram o referido Lançamento da Pedra Fundamental da
construção da sede da Caixa Beneficente, ocorrido em 03 de maio de 1925,
destacando a solenidade prestigiada por importantes autoridades civis e
militares da época, entre elas o presidente do Estado de São Paulo, Dr. Carlos
de Campos, e o Secretário da Justiça e da Segurança Pública, Dr. Bento Pereira
Bueno.
Em apenas um ano,
surpreendentemente, graças ao grande esforço da administração militar e de
voluntários, a obra foi concluída, mesmo com as dificuldades de
uma construção de vulto, com riqueza arquitetônica notável naquela época, utilizando-se
basicamente tijolos de argila. Ainda, as peças de mármores nas escadas e
barrados, as grades de ferro, os
pisos de ladrilho hidráulico, o madeiramento de portas, janelas, batentes
e as pinturas originais nas paredes são detalhes de expressiva beleza,
resultado que torna ainda mais surpreendente a velocidade da construção da sede.
O ato
público de inauguração deu-se em mais uma concorrida solenidade no ano de 1926,
que contou com a presença do Secretário da Justiça e da Segurança Pública, e que
foi registrada em filme pela produtora “Rossi-Film”, com película em preto e
branco, sem áudio, contendo trechos do evento. Esse registro, em fragmentos,
junto como outras representações da Força Pública de São Paulo na época, foi recentemente
recuperado e digitalizado (arquivo disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=73CkSjn0F
k0>; acesso em: 22 Ago. 2017)
Após sua inauguração, o Casarão foi ocupado
como sede da Caixa Beneficente da Força Pública, tendo acolhido reuniões do seu
Conselho no Salão Nobre do piso superior, com acesso à sua sacada principal.
Comprovam essa destinação os registros do livro “A Força Pública - Esboço
Histórico, 1831 a 1931” lançado em comemoração ao Centenário da Instituição, em
1931 e republicado pela Imprensa Oficial do Estado em 1982, com foto da fachada
do prédio e o registro do seu ambiente interno (Salão Nobre) com uma reunião da
antiga Diretoria naquele espaço (cito: ANDRADE, Euclides de &
CÂMARA, Hely F. de. A Força Pública de São Paulo, Esboço Histórico. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado - reimpressão, 1931/1982, p. 191 e seguintes).
Ilustração da pg. 101 do livro
comemorativo ao Centenário da então Força Pública de São Paulo (A Força
Pública de São Paulo, Esboço Histórico, de 1931), mostrando a sede da Caixa Beneficente e a utilização
do Salão Nobre em reunião de diretoria.
Em
25 de fevereiro de 1937, o
monumental casarão veio a receber nova e honrosa atribuição: passou a funcionar
como a primeira sede do Tribunal de Justiça Militar (TJM), criado pouco antes,
em 8 de janeiro do mesmo ano pela Lei Estadual n. 2.856. O TJM foi oficialmente
instalado nesse espaço em ato solene que contou com a presença do governador do
Estado. Importante registrar que os primeiros juízes liderados pelo primeiro
presidente (biênio 1937/1938), Coronel Arlindo de Oliveira, já assumiram os
trabalhos na referida sede, destacando-se o uso do Salão Nobre na parte
superior do sobrado (fotos da instalação do Tribunal e demais informações integram
o livro História de Justiça Militar do
Estado de São Paulo, de 1976, do Juiz Gualter Godinho, então presidente do TJM,
São Paulo: IMESP, p. 15).
Os primeiros juízes foram o Doutor Romão Gomes, que havia sido consultor
jurídico da Força Pública e hoje dá nome ao Presídio Militar em São Paulo; o
Doutor Mário Severo de Albuquerque Maranhão, que fora auditor da Força Pública,
cargo que, ainda de forma incipiente, já exercia certas funções castrenses antes
mesmo da criação do TJM; além do Coronel Arlindo de Oliveira - primeiro
presidente - que antes fora Comandante Geral da Força Pública, nos anos de 1935
a 1936, e por consequência também Superintendente da Caixa Beneficente.
Ilustração
do livro História de Justiça Militar do
Estado de São Paulo, de 1976, p. 15 e seguintes. Mostra a solenidade de
instalação do TJM no espaço do Salão Nobre da antiga sede da Caixa Beneficente
da Força Pública, em 25 Fev. 1937.
Em 1942 a Caixa Beneficente reocupou as instalações do prédio, em
razão de que o TJM passou a funcionar em novo endereço, também provisório, na
Av. Tiradentes, n. 822. Somente em 12 de janeiro de 1976 o Tribunal inaugurou
sua sede própria na Rua Doutor Vila Nova n. 285, depois de atuar em vários
endereços a partir de 1942 (livro História
da Justiça Militar do Estado de São Paulo, obra citada, p. 385).
Em 1974, mediante a Lei n. 452, de 02 de outubro, ocorreu a fusão da Caixa Beneficente da Força
Pública do Estado e da Caixa Beneficente da Guarda Civil de São Paulo,
instituindo-se a Caixa Beneficente da Polícia
Militar (CBPM) e estabelecendo-se os regimes de pensão e de assistência
médico-hospitalar e odontológica, em conformidade com o disposto no Artigo 12 do
Decreto-lei n. 217, de 8 de abril de 1970. O antigo prédio da Força Pública
prosseguiu como sede do órgão que passou a cuidar dos benefícios dos
dependentes dos novos integrantes da Polícia Militar, bem como dos dependentes
dos integrantes das antigas Força Pública e Guarda Civil.
No ano de 2002, por ocasião do aniversário de 97
anos de existência da Caixa, foi anunciada reforma no “prédio antigo que ganha
roupa nova para o aniversário”. Todavia, a reforma não foi suficiente para a plena
recuperação da sede histórica em razão dos detalhes de sua construção original,
substituídos ao longo dos anos por pequenas adaptações. Na oportunidade, era
Superintende o Coronel PM Júlio Gomes da Luz (registro constante do informativo
“Ao Toque da Caixa”, ed. Jul-Ago/02, ano VII, número 35).
Em 24
de agosto de 2017, finalmente, em razão de grande empenho da Diretoria e colaboradores liderados pelo
Superintendente Coronel PM Luís Henrique Falconi, deu-se a reinauguração do Casarão,
como “Sede Histórica da Caixa Beneficente” em solenidade comemorativa aos 112
anos da instituição. Com investimento próprio e também com a participação de
voluntários, somaram-se doze meses de
obras e mais de cinquenta profissionais dos mais variados ofícios.
Desse
modo, foram recuperados detalhes da construção
original, em especial quanto ao madeiramento das portas e janelas, as
ferragens, o piso original, as pedras e detalhes arquitetônicos, a pintura e a
reocupação correta de espaços esquecidos como o próprio Salão Nobre (com um
novo espaço de memória), o Campanário, as salas da Superintendência e o novo
espaço do auditório General Francisco Alves do Nascimento Pinto, além do acesso
lateral térreo. Na mesma oportunidade, foi inaugurado o espaço de convivência
“Dona Hortensia D’Asti”, na lateral do prédio, em justa homenagem à fundadora
da União das Pensionistas da Caixa Beneficente da Polícia Militar,
personalidade e associação ligadas de forma inseparável à história da
centenária casa. O busto da Dona Hortência, que por anos permaneceu naquela
associação, passou a adornar a nova casa.
Destacou-se na
oportunidade, também, a reinstalação do quadro histórico elaborado em homenagem
ao Primeiro Conselho da Caixa Beneficente da Força Pública, que permaneceu por
anos guardado no acervo do Museu de Polícia Militar, e finalmente pode
novamente ser visto, após minucioso trabalho de restauração.
Enfim,
o imponente Casarão, sede histórica da CBPM, está recuperado e rejuvenescido, o que representa uma conquista para a família
policial-militar que projeta o futuro com respeito ao passado: eis uma grande
realização que envolve e une os dependentes e beneficiários no tempo da tradicional
Caixa Beneficente, no espaço paulista do Bairro da Luz.
Adilson Luís Franco Nassaro
25 de agosto de 2017
Bibliografia
ANDRADE, Euclides de &
CÂMARA, Hely F. de. A Força Pública de São Paulo, Esboço Histórico. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado - reimpressão, 1931/1982.
CBPM. Ao Toque da Caixa. Informativo impresso,
ed. Jul-Ago/02, ano VII, número 35.
CRUZ AZUL. Histórico. Disponível em: <http://www.cruzazulsp.com.br/institucional/histo
ria/>; consulta
em: 22 Ago. 2017.
GODINHO, Gualter. História
de Justiça Militar do Estado de São Paulo. São Paulo: IMESP,
1976.
JORGE, Clóvis de
Athayde. Luz: notícias e reflexões. Série:
história dos bairros de São Paulo, volume 27. São Paulo: Departamento de
Patrimônio Histórico, 1988.
ROSSI-FILME. Registro, em
fragmentos, junto como outras representações da Força Pública de São Paulo na
época, foi recentemente recuperado e digitalizado (arquivo disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=73CkSjn0Fk0>;
acesso em: 22 Ago. 2017).