terça-feira, 21 de setembro de 2010

O tráfico de animais silvestres no Brasil


1. O significado da expressão
No ordenamento jurídico brasileiro não existe propriamente a figura de um delito intitulado “tráfico de animais silvestres”, mas há indicação de um conjunto de condutas relacionadas de algum modo ao aproveitamento irregular de animal integrante da fauna silvestre, com ganho econômico dele decorrente. Constituem exemplos: a caça; a apanha; a venda; a exposição; o transporte; a aquisição; a manutenção em cativeiro; e a utilização; dentre outras, nos termos do art. 29 e os incisos I, II e III do seu parágrafo 1º, da Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conhecida com “Lei dos Crimes Ambientais” (de acordo com a definição do parágrafo 3º, do mesmo artigo: “são espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”).
O uso comum da expressão “tráfico de animais”, inclusive no âmbito dos órgãos de fiscalização e dos demais atores envolvidos na proteção da fauna silvestre, aponta para uma interpretação consensual, qual seja, a de que integram o ciclo do tráfico de animais silvestres: a captura; o transporte; a guarda; e a comercialização propriamente dita, que são voltados à obtenção de alguma vantagem econômica.
Assim como ocorre com o tráfico de drogas, emprega-se usualmente apenas o vocábulo tráfico como sinônimo de “negócio proibido”. Mas convém um esclarecimento preliminar: a palavra tráfico por si só pode significar especificamente “comércio” (regular ou não) como apresentam os dicionários de língua portuguesa, em pese o seu uso mais comum, sem adjetivação, já denotando negócio ilícito ou indecoroso, associado aos seguintes “objetos” de circulação: drogas; armas; animais silvestres; órgãos humanos; obras de arte; escravos em passado não muito distante e, mais recentemente, também associado à circulação de crianças para adoção ilegal e à circulação de mulheres como modalidade de lenocínio. Tráfico igualmente se associa à influência, também no sentido de negociação ilícita, na conduta de aceitar oferecimentos e/ou receber presentes para obter de um governante ou duma autoridade pública uma vantagem qualquer; ou advocacia administrativa (dentre outros consultados, FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996).
No caso dos animais silvestres, note-se que pode ocorrer o comércio legal (ou regular), desde que o animal seja proveniente de criadouros autorizados - como se interpreta na leitura do inciso III, do par. 1º, do art. 29, da mesma Lei 9.605/98; mas, nessa situação não se tem utilizado o vocábulo “tráfico”, naturalmente pelo sentido negativo que ele adquiriu, em razão das associações mais comuns a diversas práticas ilegais.
Formalmente, a ilegalidade de atos relacionados ao comércio de animais silvestres existe no Brasil a partir da proibição da caça e da venda de algumas espécies silvestres, o que ocorreu apenas com a vigência do antigo “Código de Caça”, instituído pelo Decreto Federal nº 23.672, em 02 de janeiro de 1934 (MELE, João Leonardo. A Proteção do Meio Ambiente Natural. Cubatão: Edição Petrobrás, 2006, p. 58).
O tema ganha relevância em razão dos números expressivos indicados quanto à circulação ilegal e contemporânea de animais silvestres. Entidades internacionais de pesquisa apontam que o Brasil abastece de 10 a 15 por cento do mercado clandestino de animais silvestres. A atividade internacional é responsável pela circulação anual de aproximadamente 10 bilhões de dólares no mundo e 700 milhões de dólares em relação ao país.
Pelo critério de circulação de valores em dinheiro, o tráfico de animais silvestres no mundo perde apenas para o tráfico de armas e para o tráfico de drogas (LIMA, Pedro C. de e SIDNEI, Sampaio dos Santos. Cetas: an importante tool to fight Illegal traffic of sylvan animals and reintroduction of species in protected habitats in light of eco-tourism activities. In World Ecotour, Annals of Second International Congress & exhibition on ecotourism. Biosfera: Salvador. 2000. p. 29).

2. Evolução legislativa e caracterização da prática ilegal
A caça compreendida como a captura do animal no seu meio natural, abatido ou não, já era praticada muito antes da chegada dos colonizadores, como meio de subsistência, por exemplo, pelos índios tupis na área coberta pela Mata Atlântica, nesse caso, com características culturais marcantes, como ilustra Warren Dean: “Os caçadores tupis evidentemente experimentavam complexas interações psíquicas com sua caça. Atribuíam almas aos animais e se identificavam profundamente com eles. Um caçador não consumia ele mesmo a caça que havia abatido, por medo de vingança do animal” (DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a destruição da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 55).
Quanto ao aproveitamento econômico do objeto da caça, que veio a caracterizar a figura do caçador profissional, não havia em princípio irregularidade na comercialização de animal simplesmente pela sua qualidade silvestre, desde que não constituísse propriedade alheia. A “proteção” da fauna no Brasil, influenciada pela doutrina civilista do começo do século XX, partiu de uma noção privatista da relação existente entre o homem e os animais. O Poder Público protegia o valor econômico agregado ao animal, defendendo a sua propriedade particular ou mesmo a expectativa de propriedade do criador, do pescador ou do caçador (nessa fase, o legislador preocupou-se em coibir condutas lesivas aos semoventes, objetivando protegê-los enquanto bens jurídicos incorporados ou passíveis de incorporação ao patrimônio particular. Para tanto, classificou-os materialmente como bens móveis, com a característica de “bens suscetíveis de movimento próprio”, na precisa definição do art. 47 do Código Civil de 1916, em redação atribuída a Clóvis Bevilacqua). Tal como a água, por exemplo, o animal sem dono constituía "res nullius"; assim, na condição de bem que não estava integrado ao patrimônio de alguém, poderia vir a pertencer àquele que o caçasse, em razão do próprio sentido primitivo da dominação do meio natural identificado por Keith Thomas: “Com efeito, ‘civilização humana’ era uma expressão virtualmente sinônima de conquista da natureza” (THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.21-61).
Com o advento do Código de Caça, de 1934, que estabeleceu restrições à caça e à comercialização, tornou-se possível identificar atos caracterizados como tráfico ilícito de animais silvestres, sob o ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro voltado à proteção da fauna. Antes disso, poder-se-ia identificar um crime de ordem patrimonial, como o furto e, consequentemente, a receptação, mas não especificamente a condição de tráfico pela característica silvestre do animal objeto de negociação.
Já em 1967, surgiu outra novidade com a Lei Federal nº 5.197, de 03 de janeiro, conhecida como “Lei de Proteção à Fauna”. Foi estabelecido, logo em seu art. 1º, que: “Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu desenvolvimento que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”.
Esse dispositivo refletiu, já na década de 1960, o reconhecimento das limitações do recurso natural “fauna silvestre” e de sua relevância para a integridade do meio ambiente. Em razão disso, tornou-se indisponível a apropriação do objeto jurídico tutelado na condição de bem público, pertencente à União. Ainda, leis posteriores continuaram a estabelecer como condição de exploração da fauna silvestre a obtenção de autorização, licença e concessão expedidas pelo órgão público competente, em consonância com a interpretação de titularidade do Estado, como ente federal, em relação ao referido bem jurídico.
Essa maior proteção legal dirigida aos animais silvestres surgiu após expressiva ocupação humana dos seus ecossistemas em período de expansão e de acelerado desenvolvimento no país. Proibiu-se definitivamente a caça profissional - que durante séculos dizimou espécimes da fauna silvestre brasileira - e, quanto à caça amadora, foram estabelecidas condições para a sua prática verificada em alguns dos Estados da Federação.
A partir do que foi estabelecido em 1967 (fauna silvestre como propriedade da União), a evolução dos textos legais fez surgir o moderno conceito de bem ambiental, como novo tratamento jurídico aplicado à fauna, cujos titulares são indeterminados, vez que, teoricamente, todos os homens têm interesse em relação ao meio ambiente, ou seja, há o interesse difuso pelo reconhecimento da função ecológica do animal, que é anterior ao seu valor individual eventualmente observado na esfera econômica (nesse sentido, FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 86).
Nos anos seguintes, o mundo viveu momentos marcantes quanto ao reconhecimento da importância da relação do homem com a natureza e o equilíbrio ecológico do meio ambiente, surgindo inclusive uma nova forma de estudar a história, conforme destacou Worster: “A idéia de uma história ambiental começou a surgir na década de 1970, à medida que se sucediam conferências sobre a crise global e cresciam os movimentos ambientalistas entre os cidadãos de vários países. Em outras palavras, ela nasceu numa época de reavaliação e reforma cultural, em escala mundial” (WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, Rio de Janeiro: FGV, 1991, p. 199).
Já em 1988, a Constituição Federal estabeleceu no seu art. 225, § 1o, inciso VII, que “compete ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”. No âmbito da legislação infraconstitucional, a Lei 9.605/98 prescreveu as condutas que podem caracterizar o tráfico de animais, dentre outras ações delituosas verificadas na relação entre o homem e as demais formas de vida animal.
Não obstante o aparato legal proibitivo, a prática do tráfico de animais silvestres evoluiu ao longo das décadas no Brasil, por meio de divisões de tarefas e do aperfeiçoamento da dissimulação do transporte, para manter o lucro e, com isso, a compensação do risco das sanções inerentes às condutas criminosas perpetradas, privilegiando sempre o objetivo econômico, ou seja, a obtenção da vantagem indevida.
Várias formas cruéis de camuflar o transporte de animais são ainda hoje desenvolvidas nesse propósito, como a sedação e o acondicionamento de pássaros em tubos fechados no interior de malas de viagem, conforme registros recentes em boletins de ocorrência policial. A maioria dos animais transportados em tais condições morre antes mesmo do término da viagem, ou chegam totalmente debilitados ao destino. Portanto, associado ao tráfico, invariavelmente tem sido identificado pelo menos outro crime: a crueldade contra os animais, além da configuração da formação de quadrilha, esta no caso de criminosos agindo em unidade de propósitos para completar o ciclo do tráfico (a crueldade, ou maus-tratos dirigidos a animais constitui conduta prevista como crime no artigo 32, também da Lei Federal 9.605/98, com o seguinte tipo penal: “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena: detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”. Já a formação de quadrilha tem a seguinte tipificação, encontrada no artigo 288, do Código Penal: “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos”).

3. Prevenção e repressão
No plano da fiscalização, verificam-se o surgimento e o papel desenvolvido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pelas Polícias Ambientais dos Estados, com ações de prevenção e repressão ao tráfico, sob a ordem jurídica da ampla tutela do Estado em relação aos animais silvestres.
Decorrente do agravamento das questões ambientais e diante de uma crescente movimentação em todo o mundo em prol de iniciativas de proteção dos recursos naturais, no ano de 1967 foi criado, no âmbito do Ministério da Agricultura, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, mesmo ano em que entrou em vigor a “Lei de Proteção à Fauna”. Esse órgão foi extinto e substituído pelo IBAMA, que é agência ambiental criada pela Lei Federal nº. 7735, de 22 de fevereiro de 1989, subordinada ao Ministério do Meio Ambiente brasileiro e formado pela fusão de quatro entidades brasileiras que trabalhavam na área ambiental, quais sejam: Secretaria do Meio Ambiente - SEMA, Superintendência da Borracha - SUDHEVEA, Superintendência da Pesca - SUDEPE e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF.
Atualmente o IBAMA tem como atribuições, dentre outras, exercer o gerenciamento, controle, proteção e preservação das espécies silvestres brasileiras da fauna e da flora. Porém, em razão do seu pequeno corpo de agentes para fiscalização em todo o território brasileiro, ao longo de sua existência foi cedendo a área de atuação para as Polícias Ambientais dos Estados, integrantes das estruturas das polícias militares estaduais e constituídas como órgãos de competência abrangente, no amplo espectro da preservação da ordem pública (o parágrafo 5º, do inciso IV, do artigo 144, da Constituição Federal, estabelece a sua competência, nos seguintes termos: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública...”).
Antes do IBAMA, no Estado de São Paulo surgiu em 14 de dezembro de 1949 o Policiamento Ambiental, originariamente como “Polícia Florestal” e integrada por efetivo da então Força Pública, atual Polícia Militar. Atuando no cumprimento da legislação de proteção aos recursos naturais, ao longo dos anos o efetivo foi assumindo praticamente toda a fiscalização de campo sobre o comércio ilegal de animais silvestres e as condutas a ele relacionadas. Tal concentração deveu-se à sua presença em todo o território estadual, e a circunstância de que o IBAMA passou a priorizar, por limitações operacionais, a emissão das licenças e a atualização dos cadastros dos criadouros legalizados, na condição de gestor do controle e proteção da fauna (informações obtidas junto à Seção Operacional do Comando de Policiamento Ambiental, em São Paulo).
Essa centralização na esfera da fiscalização passou a ser mais evidenciada a partir da vigência da Lei Federal nº 9.605/98, que trouxe também novas definições aos crimes ambientais. Ao longo da década seguinte, praticamente todas as ocorrências envolvendo condutas relacionadas ao tráfico de animais no Estado de São Paulo, geradoras de providências administrativas e criminais, com apreensão dos animais, foram registradas nos Boletins de Ocorrência do Policiamento Ambiental paulista. Na maior parte dos outros estados brasileiros é verificada situação parecida, ou seja, o efetivo policial-militar com competência de preservação da ordem pública e polícia ostensiva ao longo do tempo assumiu a prevenção e repressão às condutas relacionadas ao tráfico de animais silvestres.
Nos últimos anos, as ocorrências têm sido observadas em três grupos: as de atendimento à denúncia de guarda ou manutenção de criadouro irregular e comércio; as de constatação do transporte de animal detectado em bloqueios policiais ou em atendimento igualmente a denúncias; e as de fiscalização quanto aos atos de comercialização propriamente dita. Muito comum, também, a constatação de maus-tratos, nesse caso, voltados tanto a animal silvestre quanto ao doméstico, bem como a verificação das condições de eventual mantença, ou guarda doméstica, como também é conhecida a conduta para o propósito de estimação, nesse caso sem qualquer finalidade de vantagem econômica, comportamento que não se tem enquadrado como utilização para fins de responsabilidade penal, ou administrativa (nesse último caso, desde que não pertença o animal à espécie considerada ameaçada de extinção, nos termos do parágrafo 2o., do artigo 19, da Resolução SMA 37, de 09 de dezembro de 2005, em São Paulo, que regulamenta a aplicação do Decreto Federal n. 3.179, de 21 de setembro de 1999. vide NASSARO, Adilson Luís Franco. A Mantença de Animais Silvestres a Propósito de Estimação. Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Sociais e Jurídicas. Guarulhos: FIG, 2001 e COMANDO DE POLICIAMENTO AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação. Boletim Técnico nº 2, ano I, 15.08.2000).
Sem prejuízo do conjunto de providências decorrentes da constatação do tráfico de animal silvestre, o efetivo do Policiamento Ambiental tem investido no aspecto da educação ambiental como estratégia de prevenção, voltado destacadamente ao público jovem e estudantil.
Quanto à repressão ao tráfico internacional, especificamente, que passou a envolver grande volume de animais silvestres comercializados, a atuação da Polícia Federal se mostra expressiva a partir do final da década de 1990.

4. Considerações finais
As leis que trouxeram dispositivos de proteção aos animais de um modo geral surgiram, ao longo do tempo, como reflexo do reconhecimento da imprescindibilidade de um meio ambiente equilibrado, de que são partes indissociáveis a fauna e a flora na sua total diversidade. O homem situa-se como principal agente transformador do meio e, ao mesmo tempo, original integrante do universo dos seres vivos dependentes de relações processadas no meio natural.
Enquanto a intervenção humana atingia proporções que impediam a espontânea regeneração da camada de cobertura vegetal devassada, iniciou-se processo de extinção de espécies em virtude da incapacidade de adaptação, pela abrupta alteração do meio natural e também em razão da impossibilidade de manutenção de formas sensíveis de vida em ambiente artificial. Como conseqüência, passou o Estado à tutelar a fauna, mediante legislação específica, sob o enfoque da preservação do valor ecológico da vida animal.
A verificação da evolução da tutela ambiental, em especial a proteção legal da fauna silvestre no Brasil, merece destaque em oposição à contínua ação dos traficantes, que constituem irregulares aproveitadores desses recursos. Não se interpreta a ordem jurídica específica e a movimentação estatal manifesta nas ações de polícia e em seus desdobramentos sem conhecimento do desenvolvimento, ao longo do tempo, do esforço legal de preservação desses bens naturais limitados. A análise dessa proteção legal da fauna no Brasil, em face do tráfico de animais, subsidia conclusão centrada no desenvolvimento da teoria da posse aplicada ao animal silvestre, indicando que o traficante subverte a ordem do regular e justo aproveitamento do recurso especialmente protegido para o propósito do bem comum.
A riqueza dos recursos naturais do país e o aspecto econômico implícito nas vantagens que dão lastro ao aproveitamento da fauna silvestre, tendo por condicionante o legal reconhecimento desse bem como público (de interesse difuso), explicam as duas faces da mesma moeda, presentes no país desde longa data. Apresenta-se a face da marginal captura, transporte, guarda, comercialização e utilização do animal silvestre e de seus subprodutos, que se mantém ainda na primeira década do século XXI e, de outro lado, a face do crescente aproveitamento regular desses recursos mediante instrumentos legais de licença de uso, como solução para a sustentabilidade no manejo da fauna.
Não obstante o esforço legal de caráter permanente, os traficantes prosseguem aprimorando as técnicas para consumar práticas delituosas, e por isso clandestinas, a fim de alcançar os seus propósitos e buscam lacunas na atuação dos órgãos de fiscalização fazendária, de fiscalização de transportes e na movimentação dos órgãos policiais na área de segurança pública, de um modo geral.
Com o avanço da biotecnologia, os bancos genéticos naturais passaram também a despertar interesse no mercado clandestino internacional, face à possibilidade de aproveitamento dos recursos biológicos na condição de material para pesquisa e desenvolvimento científico, em busca de soluções medicinais e de produção de bens diversos que propiciem melhor qualidade de vida, com baixo custo.
Assim, a riqueza da biodiversidade no Brasil, que possui várias espécies endêmicas, constitui foco de pesquisadores de diversas partes do mundo, ensejando ações de iniciativa governamental, e mesmo privada, para a preservação das espécies nativas brasileiras. Nesse contexto, surgem ocorrências que evidenciam a prática da chamada biopirataria, por meio do tráfico de animais e o aproveitamento irregular da riqueza genética das espécies brasileiras, integrantes da fauna silvestre.
Por fim, as ações do Estado buscam prevenir e reprimir o tráfico de animais silvestres, apresentadas inicialmente pelo trabalho desenvolvido no âmbito do Policiamento Ambiental. Portanto, as análises das ocorrências com apreensões de animais no tempo presente têm relevância para verificação das estratégias desenvolvidas pelos traficantes e também para identificação e dimensionamento do esforço legal e Institucional voltados a coibir tais condutas criminosas (AZEMA, Jean Pierre - “Tempo presente”, IN BURGUIÈRE, André Org., Dicionário das ciências históricas. Trad. H. A. Mesquita. Rio de Janeiro. Imago, 1993, p. 735). Essa tarefa se volta para o campo da história ambiental, uma área nova de conhecimento favorecida pela avaliação metodológica dos registros de ocorrências policiais disponíveis.
Como concluiu Drummond: “A história ambiental é, portanto, um campo que sintetiza muitas contribuições e cuja prática é inerentemente interdisciplinar. A sua originalidade está na sua disposição explícita de ‘colocar a sociedade na natureza’ e no equilíbrio com que busca a interação, a influência mútua entre sociedade e natureza” (DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, Rio de Janeiro: FGV, 1991, p. 185).
O estudo sobre o tráfico de animais silvestres também abre espaço para amplo debate sobre a viabilidade de compatibilização de legítimos interesses sociais, diante do modo de vida contemporâneo. Essa reflexão passa obrigatoriamente, em primeiro lugar, quanto à expectativa de perpetuação das espécies da fauna silvestre, para que possam desempenhar sua função ecológica no meio natural, e, em segundo momento, quanto à regular e ampla possibilidade de utilização dos recursos da fauna silvestre disponibilizados ao homem.

REFERÊNCIAS

AZEMA, Jean Pierre - “Tempo presente”, IN BURGUIÈRE, André (Org.), Dicionário das ciências históricas. Trad. H. A. Mesquita. Rio de Janeiro. Imago, 1993.

COMANDO DE POLICIAMENTO AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação. Boletim Técnico nº 2, ano I, 15.08.2000; responsável: Cap PM Nilson Prazeres.

COMANDO DE POLICIAMENTO AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Dados Estatísticos e Estratégicos Operacionais do período 2005-2009 sobre o Tráfico de Animais da Fauna Silvestre Nacional.

DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a destruição da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DRUMMOND, José Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, Rio de Janeiro: FGV, 1991.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000.

FREITAS, Wladmir Passos de, e outro. Crimes Contra a Natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

LIMA, Pedro C. de e SIDNEI, Sampaio dos Santos. Cetas: an importante tool to fight Illegal traffic of sylvan animails and reintroduction of species in protected habitats in light of eco-tourism activities. In World Ecotour, Annals of Second International Congress & exhibition on ecotourism. Biosfera: Salvador. 2000.

MARTINEZ, Paulo Henrique. História ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez. 2006.

MELE, João Leonardo. A Proteção do Meio Ambiente Natural. Cubatão: Edição Petrobrás, 2006.

NASSARO, Adilson Luís Franco. A Mantença de Animais Silvestres a Propósito de Estimação. Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Sociais e Jurídicas. Guarulhos: FIG, 2001.

NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Direito Ambiental Aplicado à Proteção da Fauna. Apostila do Curso de Especialização de Oficiais da Polícia Militar Florestal de São Paulo. Edição interna, 2000.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, Rio de Janeiro: FGV, 1991.


Autor: Adilson Luís Franco Nassaro
(NASSARO, Adilson Luís Franco Nassaro. O tráfico de animais silvestres no Brasil. Fórum Ambiental da Alta Paulista, Volume VI. Tupã: ANAP. 2010) ISSN 1980-0827

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