terça-feira, 23 de março de 2010
Sobre busca, verificação e apreensão de cartas destinadas ao acusado ou em seu poder
Aprofundando os estudos relacionados à busca, atividade de extremo interesse da ação policial, nota-se que, de acordo com a alínea "f", do parágrafo primeiro, do art. 240 do Código de Processo Penal, uma das suas motivações legais compreende a de “apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado, ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato”. Portanto, a busca se prestaria também à localização de cartas, objetivando a apreensão de missivas consideradas suspeitas, conjeturada a sua utilidade para o esclarecimento de fatos considerados relevantes na esfera processual.
No entanto, o Código de Processo Penal em vigor - de 1941 - foi redigido sob a égide da Constituição de 1937, tal como o texto do Código Penal que estabeleceu como crime a conduta de “devassar, indevidamente, o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem” (art. 151). Faz sentido no contexto histórico, desse modo, a descrição do tipo penal que trouxe o advérbio “indevidamente” para excluir alguns casos da responsabilização penal tais como aqueles em que são buscadas e apreendidas cartas nas condições da norma processual em análise. De fato, a Constituição de 1937 também protegia a inviolabilidade da correspondência, ressalvando, todavia, hipóteses excepcionais que seriam regulamentadas mediante lei ordinária posterior (CPP).
Ocorre que a Constituição de 1988 dispôs no art. 5o, inciso XII, agrupando as inviolabilidades de comunicação, que: "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" (Constituição Federal promulgada em 05.10.1988).
Portanto, literalmente, abriu como única exceção a possibilidade de quebra do sigilo das comunicações telefônicas e, ainda assim, mediante ordem judicial, no interesse da persecução criminal. Diante dessa nova condição, a maioria dos doutrinadores posicionou-se no sentido de que a Constituição não recepcionou o dispositivo da lei processual em estudo (possibilidade de apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado...) aceitando, não obstante, a possibilidade de mandado judicial como último e extensivo recurso, posto que já aplicável à quebra do sigilo das comunicações telefônicas.
Na dinâmica construção interpretativa, surgiram ainda posições bem fundamentadas que defendem a análise restrita do texto constitucional, baseadas na compreensão de que os direitos e garantias individuais não são absolutos e nem podem se prestar à defesa do próprio delito e de seus praticantes, devendo, por outro lado, a “inviolabilidade” de correspondência ceder espaço ao interesse maior representado pela segurança pública e a correção das decisões do Poder Judiciário.
Nessa linha de raciocínio, seria possível a abertura e eventual apreensão da correspondência de acusados e presos para impedimento da continuidade de prática criminosa, com ou sem mandado judicial. Ao contrário, se a inviolabilidade da correspondência fosse aceita como absoluta, poder-se-ia chegar à insustentável situação dos líderes de grupos criminosos organizados continuarem, mesmo atrás das grades, coordenando as suas atividades mediante uso sistemático de correspondência tal como o faziam até pouco tempo mediante telefones celulares (e em alguns casos, infelizmente, ainda o fazem).
A solução defendida em relação ao uso de aparelhos celulares é a implantação de dispositivos eletrônicos que impeçam tal comunicação, bloqueando os sinais de transmissão e receptação nos limites dos estabelecimentos prisionais de segurança. Mas, e o que fazer com a carta do preso? A tese da violabilidade da correspondência dirigida ao réu preso, ou por ele encaminhada a outrem, vem ganhando defensores de grande respeitabilidade.
Justifica sua posição, nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci: "Segundo pensamos, nenhum direito ou garantia fundamental é absoluto. Fosse assim e haveríamos de impedir, terminantemente, que o diretor de um presídio violasse a correspondência dirigida a um preso, ainda que se tratasse de ardiloso plano de fuga, pois a ‘inviolabilidade de correspondência’ seria taxativa e não comportaria exceção alguma na Constituição Federal. Nem mesmo poderia devassar a correspondência para saber se, no seu interior, há drogas, o que se configura um despropósito. ... E mais, mesmo que se tivesse seríssimas suspeitas de que determinada carta, recebida por pessoa acusada de crime, contivesse a solução para a apuração da autoria do delito, podendo até inocentar terceiros, não se poderia, ainda que com mandado judicial, devassar o seu conteúdo. Cremos injustificável tal postura, pois até o direito à vida – principal bem jurídico protegido do ser humano – comporta violação, garantida em lei ordinária (como o aborto, fruto da gestação produzida por estupro ou a morte do agressor na legítima defesa, entre outros exemplos)" (Código de Processo Penal Comentado. São Paulo : RT, 2002. p. 455).
Sobre a previsão do inciso XII, do art. 5o, da Constituição Federal (“inviolabilidade de correspondência”), registrou sua interpretação Alexandre de Moraes, igualmente defendendo a inexistência de uma garantia absoluta: "A interpretação do presente inciso deve ser feita de modo a entender que a lei ou a decisão judicial poderão, excepcionalmente, estabelecer hipóteses de quebra das inviolabilidades da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados, sempre visando salvaguardar o interesse público e impedir que a consagração de certas liberdades públicas possam servir de incentivo à prática de atividades ilícitas" (Direitos humanos fundamentais – teoria geral, comentários aos arts. 1o a 5o da Constituição da República Federativa do Brasil – doutrina e jurisprudência. 2. ed. São Paulo : Atlas, 1998. Temas Jurídicos, v. 3. p. 145).
No caso concreto, podem ser destacadas algumas situações ilustrativas. Ocorreu em julho de 2002, conforme publicado no diário “Jornal da Tarde”, página 01, do Caderno “Polícia”, que um dos líderes da facção criminosa denominada “PCC”, José Márcio Felício, vulgo “Geleião”, submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), em isolamento, encaminhou por meio de seu advogado cartas escritas no presídio ao Governador do Estado, com cópias para o Secretário-adjunto da Administração Penitenciária, para o Coordenador dos Presídios da Região Oeste do Estado e para os órgãos de imprensa.
Com propósito de chamar a atenção da opinião pública e colocando-se em evidência para afrontar o sistema, em uma das cartas o preso chamou o Governador de “mentiroso e ladrão”, contestando a informação de que haviam sido gastos R$ 8 milhões para a construção de um presídio de segurança máxima (o mesmo em que se encontrava preso). Apresentando a existência de posições de eminentes juristas favoráveis à quebra do sigilo postal, em casos de necessidade pelo aspecto da segurança pública, em seguida o autor da matéria destacou mais um argumento respeitável: "Ninguém tem um direito absoluto. É possível reter a correspondência e encaminhá-la ao juiz-corregedor’, explica o juiz aposentado Luiz Flávio Gomes ... Na opinião do jurista, apenas o fato de Geleião estar em um presídio construído para abrigar chefes de facções criminosas, homens considerados perigosos, é motivo suficiente para o exame da correspondência. ‘E não há necessidade de ordem judicial para uma carta ser interceptada e examinada’, afirma Gomes. ‘A Constituição exige ordem do juiz apenas para a quebra do sigilo telefônico'" (Diário “Jornal da Tarde”, São Paulo, de 23.07.2002, página 01, do Caderno “Polícia”).
Sagaz, o raciocínio apresentado inverte a concepção original do dispositivo da Constituição que indiscutivelmente deu mais valor ao sigilo da correspondência, sendo extremamente interessante do ponto de vista interpretativo; ora, a verdade é que o inciso XII, do art. 5o, exige a ordem judicial para a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, apenas, não ressalvando hipótese semelhante para a correspondência.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal já decidiu (HC 70.814-SP, 1a T., rel. Celso de Mello, 01.03.1994, v. u, DJ 24.06.1994, RT 709/418) que cartas de presidiários podem ser violadas pela administração penitenciária, desde que respeitado o que dispõe o art. 41, parágrafo único, da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), vez que o sigilo da correspondência não pode prestar à salvaguarda de práticas criminosas. O art. 41 da mencionada Lei trata dos direitos do preso e, especificamente o seu inciso XV estabelece que é permitido ao preso: “contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”. Já o parágrafo único estabelece que alguns dos direitos, dentre eles o do inciso XV, “poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento”.
Portanto, em que pesem as respeitáveis considerações dos eméritos juristas que defendem a não aplicabilidade do dispositivo em estudo (art. 240, parágrafo primeiro, alínea f), em face do texto da Constituição Federal, compartilhamos a opinião de que não existem direitos e garantias absolutas, inclusive a da inviolabilidade de correspondência, especialmente no caso dos presos. Como ensina José Joaquim Gomes Canotilho: "A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso” (Direito Constitucional. Coimbra : Almedina, 1995. p. 190).
Certo é que, se nada for encontrado que enseje a apreensão da missiva, deverá esta ser devolvida ao destinatário, preservando-se ao máximo a intimidade daquele que teve violada a sua correspondência. Ainda que alguma informação de ordem estritamente pessoal tenha sido revelada a quem obteve o acesso por dever de ofício, o assunto permanecerá preservado de qualquer divulgação, sob pena de evidente responsabilização do agente.
Não se trata propriamente de confrontar os bens jurídicos tutelados para a verificação de qual deles é mais importante - a intimidade, o sigilo das correspondências e da vida privada, a segurança pública e também o interesse de punir criminosos - mas, sim, de buscar a harmonização entre os princípios, direitos e garantias constitucionalmente estabelecidos de forma que um direito não seja sobreposto a outro, vez que não existe hierarquia entre eles na circunstância inegável de que todos têm sua origem na Constituição Federal.
autor: Adilson Luís Franco Nassaro
(reprodução autorizada, desde que citadas a fonte e a autoria)
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